sexta-feira, novembro 07, 2003

No quotidiano tudo gira

No quotidiano tudo gira

São sempre os mesmos problemas, dificuldades, dramas, situações, o que não é sempre igual é o olhar, somos nós com relação as cenas, os atores. É como aquela música: 'todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã, e sorri um sorriso pontual e me beija com a boca de hortelã... todo dia ela diz que é pra eu me cuida e essas coisas que diz toda mulher, diz que está me esperando pro jantar e me beija com a boca de café...' No quotidiano qualquer grande abstração torna-se algo prático do qual depende sempre a próxima ação, idéia, então o quotidiano equivale a sucessão de fatos que nos impõe diariamente maneiras de nos posicionarmos, de resolvermos nossos problemas, maneiras de sentir sempre novas, portanto é sempre tudo de novo, já que nós somos sempre um pouco não-iguais, apesar de conservarmos grande parte do igual que éramos.

Diziam uns amiguinhos(as) meus que sentem dificuldade de reter as reflexões por causa das situações diárias que necessitam sempre de uma maneira de agir rápida, instantanêa, às vezes contrarias a reflexão, independente ou não da reflexão, cada ato tem uma consequência, exige responsabilidade, então quanto mais consciente das implicações, mais senso de responsabilidade, ou não. Dizia eu em resposta a eles(elas) que esse distanciamento que fazíamos em alguns momentos (do quotidiano) servia apenas pra termos um pouquinho mais de consciência de que a vida que estamos vivendo é a vida que estamos escolhendo em cada pequenino ato, e então perceber-mo-nos como responsáveis por essa vida que estamos vivendo. De que somos nós os autores que estamos pintando-a. Distanciar-se só serve pra isso, pra sentir-mo-nos como quem escolhe os conceitos que vão guiar a nossa vida (isso quando dá pra pensá-los), mas parece que dessa forma dá um gosto a mais no nosso viver.

No senso comum os conceitos sobrevivem como um turbilhão, senão tentamos organizá-los um pouco ficamos impressionados como um conceito pode ter o sentido de muitos outros. Um exemplo bem claro disso são os conceitos de amor, prazer, segurança econômica, felicidade, planejamento familiar (gestão da família, do relacionamento), todos esses conceitos são sinônimos no nosso bom e nem tão velho Ocidente. E esse turbilhão é mais ou menos o que acaba nos governando e tirando o senso de responsabilidade que temos ou deveríamos ter com relação aos nossos atos, nossa maneira de agir do mundo, sobre a nossa vida. Não quero dizer que devamos conhecer os conceitos para enfim romper com essa ideologia assim ou assada, talvez seja justamente pra olhar todo esse emaranhado e dizer sim a tudo isso, ou então não, indignar-se e buscar esclarecer o que certas coisas significam, pra sentir-se um pouco mais confortável nesse mundo, achando que a razão individual realmente pode organizar o caos de conceito que vivemos.

A própria expressão que usa-se: 'mas você só vive, não reflete?', já contém toda uma história, uma tradição meditativa, reflexiva, que nos convida a pensar em certas coisas. Entrei na filosofia com o espírito da utilidade, ainda carrego muito dele em mim, 'por que faço tal coisa, ah porque me rende tal outra, ótimo', precisando sempre ter claro pra mim o que estou fazendo, por que, pra que, e tudo mais; o choque que sofri ao entrar no curso de filosofia e ver todas aquelas indefinições, aqueles conceitos, foi duro, mas no fundo estou aos poucos conseguindo pegar a dinâmica do curso, no fundo são homens e mulheres que incomodavam-se de 'somente e viver' e acreditavam que podiam, ou então, que deveriam organizar esse mundo de conceitos na qual eles vivem ou viveram, pra poder sentirem-se mais vivos talvez, segurando um pouco mais as rédeas da sua existência, digo 'um pouco mais', pois se somos livres realmente e não temos consciência de todas as consequências dos nossos atos no mundo, então obviamente não teremos controle sobre como que fazendo uma certa coisa essa possa ocasionar, ou desencadear uma série de acontecimentos inesperados.

Ao final da vida sabemos que fomos mais vividos por conceitos que não pensamos e nem escolhemos nós próprios do que propriamente fomos vivos no sentido forte da palavra, escolhendo e tendo responsabilidade por nossas escolhas, e vendo que a culpa dos nossos atos no mundo não podem ser mais atribuídos a ninguém mais a não ser nós mesmos. Ao final de alguns meses lendo Sartre e alguns comentadores, percebo o quanto esse pensador gostaria de ter controle sobre a sua vida e seus conceitos, e o quanto que ele gostaria que a consciência realmente fosse a imperatriz a governar a sua vida (indo no passado resignificando conceitos de acordo com os projetos futuros), mas parece-me que não é tão simples assim e que realmente o ambiente imprime-nos certos conceitos e modos de pensar, agir, julgar, que não se tem muito controle e querer ter claro tudo isso é bem complicado, pois demanda uma minunciosa análise de como o mundo, as pessoas, te tocam, vão deixando marcas em nós, e ajudam a formar a rede conceitual com que vivemos todos os dias. Talvez fosse bom ter presente de onde vieram tais e tais conceitos, para poder julgar e decidir comprometer-se com eles ou então reformulá-los, assumindo novas responsabilidades.

Mas mesmo assim, isso não nos dispensa da tarefa heideggeriana do afastamento do ente, ver o mundo da perspectiva do Ser, tudo bem não irei continuar com a diferença ontológica. Sinto-me mais consciente de minhas ações no mundo e como tomar ou fazer certas escolhas me ajuda a construir-me realmente, consegui negar realmente muita coisa e maneira de pensar, conseguir reformular outras crenças e maneiras de me posicionar, mas isso porque eu fiz a experiência de tentar pensar o mundo, e aliás estou fazendo ainda, de tentar cada vez mais me situar e entender certas coisas, mesmo que não chegue a lugar nenhuma, meu objetivo é encarar um ceticismo no bom sentido do termo, que não pare de pesquisar e nem de estudar, nem de buscar entender, do contrário como algumas correntes céticas que já que não podiam ter certeza de nada atiravam-se a alguma religiosidade, ou alguma crença, e procuravam por ai a 'ausência de preocupações'. Meu ceticismo é a busca incessante pelo nada, preciso ir até o nada, vê-lo, beijá-lo na boca e morrer.

E a luz voltou...

E a luz voltou...

Graças a deus dizem alguns, obrigado aos funcionários técnicos e engenheiros da CELESC (Central de Energia Elétrica de Santa Catarina), outros xingam os engenheiros e técnicos, chamando-os de irresponsáveis, outros ainda dizem: parabéns a cidade de Florianópolis que soube se comportar tranquilamente, essa pessoa provavelmente não ouviu sobre os quinhentos assaltos e um estupro - isso foi o mínimo dos mínimos registrado (tudo bem que o coronel da polícia disse que esses atentados foram todo o tipo de ocorrência desde: não estou encontrando meu gato - até - acho que fui estuprado).

É o caso será de agradecer? Se fosse de graça, talvez até agradeceria, mas foi o próprio erro de técnicos da CELESC que proporcionou todo esse momento agradável para os moradores da ilha, o prejuízo que a CELESC teve sem o lucro do abastecimento de toda a parte da ilha, fora ainda os processos que vai levar pela perda de alimentos nos supermercados, pode ser também responsabilizada pelos roubos, entre muitas outras coisas. Pensando bem quem mantém a CELESC somos nós, se ela for processada e tiver que pagar algo, seremos nós que teremos pagar...

Os locutores de rádio das notícias quase choram ao dar essa notícia "emocionante", pois "vivemos momentos difícies e precisamos ficar unidos", que emoção, quase me comovi, morre gente todo dia de fome, frio, assassinatos nos morros, e esse falso romantismo por causa da falta de energia? "Graças a deus", coisa nenhuma, os problemas nos afetaram, nós, pessoas consumidoras, por isso é um grande problema que fiquemos sem luz, alguém está preocupado mesmo se estamos numa situação difícil, ou não, (lá vou eu falar obviedades), ninguém está nem aí, o lucro que determina o que é de suma importância, já que esse pessoal mendigo, que faz "rabicho" pra conseguir água, luz, telefone; que não tem dinheiro pra consumir, esse pessoal tem mais é que morrer, eles são o que existe de pior pro mercado. Já os florianopolitanos (que considerou-se só a parte da ilha, pra quem não sabe de geografia, saiba que a cidade de Florianópolis não reduz-se só a ilha, mas tem uma parte continental) povo consumidor e digno esse necessita urgente ser provido de serviços básicos a sua existência como shopping center, televisão.

Estamos preocupados conosco, não afetando a nossa vida, que se danem os demais. Agora se eu puder utilizar esse momento quem sabe pra oferecer uma filantropia, quem sabe eu saio na televisão, ou então, eu ponho no meu currículo, "ajudei as pessoas napagão", posso me utilizar desses momentos pra conseguir algo que me seja interessante. Acabei de ouvir uma informação importante, como disse o radialista, "Beira-Mar Shopping já está em funcionamento, aviso aos funcionários que voltem imediatamente a trabalhar". Os adolescentes devem ter ficado de plantão na frente do seu templo preferido, "será que aconteceu alguma coisa com o BOB´s? O McDonalds vai sobreviver?", tudo voltou a normalidade, reflexão? Que nada, vamos consumir, isso parece o que o presidente Bush disse após o atentado as torres, "não deixem de consumir, comprem bastante", afinal só o que mantém o nosso complexo sistema somos nós os compradores "emergentes", acho muito curioso pensar que se deixarmos de consumir o grande e complexo sistema econômico desmorona.

Disse uma garota que estuda comigo algo muito pertinente: "ta e dái todos estão aí falando que com o apagão se pôde fazer coisas que não se fazia quando tinha luz como conhecer os vizinhos, a família dialogando, entre outras coisas, mas então por que essa obsessão por voltar de uma vez a vida robótica? Por que já que as pessoas odeiam tanto esse modelo de vida imposto, por que aceitam ser escravizadas e tornadas robôs? As pessoas nem sabem o que escolher senão aquilo que se apresenta a elas, ou seja, a vida de robôs". Concordo com ela, ou caímos em algum tipo de fatalismo, deve ser o espírito cristão que permeia a cultura e chama isso aqui que vivemos de "vale de lágrimas" e aceitamos isso. Eu penso que quem acredita que tudo é assim mesmo e nunca irá mudar e que Deus ou o FMI quis assim então será isso é uma grande idiotice, produto de quem não sabe de história, pra quem não olha pra trás e vê o que certas lutas mudaram até agora na história da humanidade, se olhássemos ao menos pra nossa América Latina, nem a história do Brazil sabemos que povo que se movimenta desse jeito vai pensar em algo senão o que está aí: "Tudo sempre foi assim e assim sempre será"; declaram os profetas, a menos que esse pessoal acredite num céu ou num inferno a coisa vai ficar feia pro lado deles.